terça-feira, 21 de dezembro de 2010

ESPAÇO PARA DEUS


Por Henri J. M. Nouwen

Todas Estas Coisas

A vida espiritual não é uma vida antes, após, ou além da nossa existência cotidiana. Não, a vida espiritual só pode ser real quando é vivida no meio das dores e alegrias do aqui e agora. Portanto, precisamos começar com um exame cuidadoso da forma como pensamos, falamos, sentimos e agimos a cada hora, a cada dia, a cada semana, e a cada ano, a fim de ficarmos mais plenamente conscientes da nossa fome pelo Espírito. Enquanto tivermos apenas um vago sentimento interior de insatisfação com nossa presente forma de vida, e somente um desejo indefinido por ""coisas espirituais", nossas vidas continuarão a estagnar-se em melancolia generalizada. Freqüentemente dizemos: "Não estou muito feliz. Não estou contente com o rumo da minha vida. Não tenho muita alegria ou paz, mas como não sei como as coisas poderiam ser diferentes, suponho que devo ser realista e aceitar a vida como é". É este espírito de resignação que nos impede de ativamente buscar a vida do Espírito.

Nossa primeira tarefa é expulsar este vago e obscuro sentimento de insatisfação e fazer um exame crítico da forma que estamos vivendo. Isto requer honestidade, coragem e confiança. Temos de honestamente desmascarar e corajosamente confrontar nossas numerosas brincadeiras que usamos para enganarmos a nós mesmos. Temos que confiar que nossa honestidade e coragem não nos levarão ao desespero, mas a um novo céu e a uma nova terra.

Bem mais do que o povo da época de Jesus, nós nesta "era moderna" podemos ser chamados de povo preocupador. Mas como nossa preocupação contemporânea realmente se manifesta?

CHEIOS

Uma das características mais óbvias das nossas vidas diárias é que estamos atarefados. Na nossa vida os dias são cheios de coisas para fazer, pessoas para encontrar, projetos para terminar, cartas para escrever, telefonemas para completar, e compromissos para guardar. Nossas vidas muitas vezes parecem malas abarrotadas rebentando nas costuras. Na realidade, quase sempre estamos cônscios de algum atraso. Há um sentimento incômodo que importunamente nos avisa que há tarefas incompletas, promessas não cumpridas, propostas não realizadas. Sempre há algo mais que deveríamos ter lembrado, feito ou dito. Sempre há pessoas com quem não falamos, a quem não escrevemos ou não visitamos. Assim, embora sejamos muito atarefados, também temos um sentimento persistente de que nunca realmente cumprimos nossas obrigações.

O estranho, porém, é que é muito difícil não estar atarefado. Estar atarefado tornou-se um símbolo de status. As pessoas esperam que estejamos ocupados e que tenhamos muitos assuntos na nossa mente. Freqüentemente nossos amigos nos dizem:

"Imagino que você está ocupado como sempre", e o dizem em tom de elogio. Reafirmam a presunção generalizada que é bom estar atarefado. De fato, os que não sabem o que fazer no futuro imediato incomodam seus amigos. Estar atarefado e ser importante normalmente parecem significar a mesma coisa. Muitos telefonemas começam com a frase: "Sei que você está ocupado, mas será que poderia me dar um minuto?" Com isto, sugerem que tomar um minuto de quem tem uma agenda cheia vale mais do que tomar uma hora de quem tem pouco para fazer.

Na nossa sociedade orientada para produção, estar atarefado ou ter uma ocupação tornou-se uma das principais formas, se não a principal, de nos identificar. Sem uma ocupação, não só nossa segurança econômica, mas nossa própria identidade é ameaçada. Isto explica o grande temor com que muitas pessoas enfrentam a aposentadoria. Afinal, quem somos depois de não mais ter uma ocupação?

Mais escravizadoras do que nossas ocupações, porém, são as nossas preocupações. Estar preocupado significa encher nosso tempo e espaço muito antes de chegar lá. Isto é inquietação no sentido mais específico da palavra. É uma mente cheia de "se". Dizemos a nós mesmos: "E se eu ficar gripado? Se eu perder meu emprego? Se o meu f ilho não chegar em casa na hora certa? Se não houver bastante alimento amanhã? Se eu for atacado? Se uma guerra começar? Se o mundo acabar? Se ... ?" Todas essas perguntas enchem a nossa mente com pensamentos ansiosos e fazem-nos indagar constantemente sobre o que fazer e o que dizer caso algo aconteça no futuro. Grande parte, senão a maioria, do nosso sofrimento tem ligação com estas preocupações. Possíveis mudanças de carreira, possíveis conflitos familiares, possíveis enfermidades, possíveis desastres, e um possível holocausto nuclear fazem-nos ansiosos, temerosos, desconfiados, gananciosos, nervosos e melancólicos. Impedem-nos de sentir uma verdadeira liberdade interior. Por estarmos sempre prontos para eventualidades, raramente confiamos plenamente no agora. Não é exagero dizer que grande parte da energia humana é investida nestas preocupações temerosas. Tanto nossa vida individual como coletiva estão tão profundamente moldadas por nossas preocupações com o amanhã, que dificilmente o hoje pode ser vivido.

Não somente estar ocupado mas também estar preocupado é altamente encorajado por nossa sociedade. A forma que jornais, rádio e televisão nos comunicam suas informações cria uma atmosfera de constante emergência. As vozes excitadas dos repórteres, a preferência por acidentes repugnantes, crimes cruéis, e conduta pervertida, e a cobertura de hora em hora da miséria humana dentro e fora do país, lentamente nos engolfam num senso abrangente de iminente destruição. Além de todas essas notícias ruins existe a avalanche de anseios. Sua insistência inflexível de que perderemos alguma coisa muito importante se ficarmos sem ler este livro, sem ver este filme, sem ouvir este locutor, ou sem comprar este novo produto, intensifica nossa inquietação e acrescenta muitas preocupações fabricadas às preocupações já existentes. Às vezes parece como se nossa sociedade dependesse da manutenção dessas preocupações artificiais. Que aconteceria se parássemos de nos preocupar? Se o desejo por divertir tanto, viajar tanto, comprar tanto, e nos proteger tanto, não mais motivasse nosso comportamento, será que nossa sociedade atual ainda poderia funcionar? A tragédia é que realmente estamos presos num emaranhado de expectativas falsas e necessidades arranjadas. Nossas ocupações e preocupações enchem nossas vidas externas e internas até ao máximo. Impedem o Espírito de Deus de fluir livremente em nós e desta forma renovar nossas vidas.

NÃO REALIZADOS

Sob a preocupação das nossas vidas, contudo, algo mais está acontecendo. Ao mesmo tempo em que nossa mente e coração estão cheios com muitas coisas, levando-nos a indagar como podemos satisfazer as expectativas impostas sobre nós por nós mesmos e por outros, temos um sentimento profundo de não realização. Embora atarefados e preocupados com muitas coisas, raramente nos sentimos verdadeiramente realizados, em paz, ou em casa. Um sentimento corrosivo de não realização está sob a superfície das nossas vidas ocupadas. Refletindo um pouco mais sobre esta experiência de não realização, posso discernir diversos sentimentos. Os mais significativos são enfado, ressentimento e depressão.

Enfado é um sentimento de estar desligado. Enquanto estamos atarefados com muitas coisas, indagamos se o que fazemos realmente faz alguma diferença. A vida se apresenta como uma série aleatória de atividades e acontecimentos desconexos sobre os quais temos pouco ou nenhum controle. Estar enfadado, portanto, não significa que não temos nada para fazer, mas que questionamos o valor das coisas que estamos tão atarefados em fazer. O grande paradoxo da nossa época é que muitos de nós estamos simultaneamente atarefados e enfadados. Enquanto corremos de um acontecimento para outro, indagamos em nosso próprio íntimo se alguma coisa está realmente acontecendo. Embora dificilmente cumpramos com nossas tarefas e obrigações, não estamos tão certos se faria alguma diferença se não as cumpríssemos. Enquanto as pessoas continuam nos empurrando por todos os lados, duvidamos se alguém realmente se importa conosco. Em resumo, embora nossas vidas estejam cheias, nós nos sentimos não realizados.

Enfado muitas vezes está intimamente relacionado com ressentimentos Ao mesmo tempo em que estamos atarefados, ainda indagamos se nossa atividade significa algo para alguém. Facilmente sentimo-nos usados, manipulados, e explorados. Começamos a nos ver como vítimas mandadas e forçadas a realizar toda sorte de coisas por pessoas que realmente não nos consideram seriamente como seres humanos. A partir daí uma ira interior começa a se desenvolver, uma ira que com o tempo se instala no nosso coração como um companheiro constantemente queixoso. Nossa ira quente aos poucos se torna uma ira fria. Esta "ira congelada" é o ressentimento que causa um efeito tão mortífero em nossa sociedade.

Porém, a expressão mais debilitante de nossa não realização é depressão. Quando começamos a sentir que não somente nossa presença não faz muita diferença, mas que também nossa ausência talvez seja preferível, podemos facilmente ser enrolados por um sentimento opressivo de culpa. Esta culpa não tem ligação com nenhuma atividade particular, mas com a própria vida. Sentimo-nos culpados por estar vivos. O pensamento de que o mundo talvez fosse melhor sem refrigerante, desodorante, ou submarino nuclear, cuja produção preenche as horas de trabalho de nossa vida, pode levar-nos à desesperante pergunta: "Vale a pena viver?" Portanto, não é de se admirar que pessoas que são sempre elogiadas por seus êxitos e realizações, freqüentemente sentem muita falta de realização, até ao ponto de suicidarem-se.

Enfado, ressentimento e depressão são todos sentimentos de desligamento. Apresentam-nos a vida como um elo quebrado. Transmitem a nós um senso de não pertencer. No caso de relacionamentos pessoais, esta desconexão é experimentada como solidão. Quando estamos solitários vemos a nós mesmos como indivíduos isolados, cercados, talvez, por muitas pessoas, mas não realmente parte de qualquer comunidade de apoio e proteção. Sem dúvida solidão é uma das doenças mais disseminadas do nosso tempo. Afeta não somente a vida dos aposentados, mas também a vida familiar, a vida comunitária, a vida escolar, e a vida profissional. Causa sofrimento não somente às pessoas idosas, mas também às crianças, aos jovens e adultos. Penetra não somente em prisões mas também em residências particulares, edifícios de escritórios e hospitais. É vista até na interação cada vez mais escassa entre pessoas nas ruas de nossas cidades. No meio de toda esta solidão impregnante muitos clamam: "Existe alguém que realmente se importa comigo? Existe alguém que pode arrancar meu sentimento interior de isolamento? Existe alguém com quem eu possa me sentir em casa?"

É este sentimento paralisante de abandono que constitui o cerne da maioria do sofrimento humano. Podemos suportar muito sofrimento físico e até mental quando sabemos que isto verdadeiramente nos torna uma parte integrante da vida que vivemos juntos neste mundo. Mas quando nos sentimos cortados da família dos seres humanos, rapidamente desfalecemos. Enquanto acreditamos que nossos sofrimentos e lutas nos unem a nossos companheiros e companheiras humanos, fazendo-nos assim partes da luta comum do ser humano por um futuro melhor, estamos plenamente dispostos para aceitar uma tarefa exigente. Mas quando nos consideramos espectadores passivos sem nenhuma contribuição para fazer à história da vida, nossos sofrimentos não são mais sofrimentos construtivos e nem nossas lutas servem para produzir nova vida, porque assim temos um sentimento de que nossas vidas acabam e desaparecem depois de nós, sem nos levar a destino algum. De fato, às vezes somos obrigados a dizer que a única coisa que lembramos de nosso passado recente é que estávamos muito atarefados, que todas as coisas pareciam muito urgentes e que dificilmente podíamos colocá-las em dia. O que fizemos não lembramos. Isto mostra quão isolados nos tornamos. O passado não mais nos leva para o futuro; simplesmente nos deixa preocupados sem nenhuma promessa de mudanças para o melhor.

Nosso desejo de ser livres deste isolamento pode se tornar tio forte que explode em violência. Então nossa necessidade por um relacionamento íntimo - com um amigo, um namorado, ou uma comunidade apreciativa - se transforma num apelo desesperado por alguém que nos ofereça uma satisfação imediata, relaxamento de tensão, ou um sentimento temporário de identificação. Neste caso, nossa necessidade mútua degenera e torna-se uma agressão perigosa que causa muito dano e somente intensifica nosso sentimento de solidão.

Hoje preocupação significa estar ocupado e preocupado com muitas coisas, e ao mesmo tempo estar enfadado, ressentido, deprimido, e muito solitário. Não estou tentando dizer que todos nós em todo tempo estamos tão extremamente preocupados. Porém, há pouca dúvida em minha mente que a experiência de estar cheio, porém não realizado, atinge a maioria de nós em alguma medida em algum tempo da nossa vida. Em nosso mundo altamente tecnológico e competitivo, é difícil evitar completamente as forças que saturam nosso espaço interior e exterior e desligam-nos de nosso ser mais íntimo, dos nossos companheiros humanos, e do nosso Deus.

Uma das características mais notáveis da preocupação é que ela fragmenta nossas vidas. As muitas coisas que temos de fazer, considerar, e planejar, as muitas pessoas que precisamos lembrar, visitar, ou conversar, as muitas causas que devemos atacar ou defender, tudo isto despedaça-nos e nos faz perder nosso equilíbrio. Preocupação nos leva a estar "em todo lugar", mas raramente em casa. Uma forma de expressar a crise espiritual de hoje é dizer que a maioria de nós tem um endereço, mas não pode ser encontrado lá. Sabemos onde está nosso lugar, mas estamos sempre sendo arrastados em muitas direções, como se fôssemos ainda desabrigados. "Todas estas coisas" estão sempre exigindo nossa atenção. Levam-nos tão longe de casa que no fim nos esquecemos do nosso verdadeiro endereço, isto é, o lugar onde podemos ser encontrados.

Jesus reage a esta condição de estar cheio porém não realizado, muito atarefado porém desligado, em todo lugar porém nunca em casa. Ele nos quer levar ao lugar onde pertencemos. Mas seu chamado para viver uma vida espiritual só pode ser ouvido quando queremos honestamente confessar nossa existência desabrigada e preocupada e reconhecer seu efeito fragmentador em nossa vida diária. Só então um desejo por nosso verdadeiro lar pode ser desenvolvido. É a respeito deste desejo que Jesus fala quando diz: "Não vos preocupeis... buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e todas estas cousas vos serão acrescentadas".

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